terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O ÚLTIMO GOLE

TEXTO: Zé da Silva
Tomou o último gole do copo de água que tirou da porta da geladeira moderna e, aí, sentiu. Era como se um incêndio irrompesse na cavidade da boca e as brasas fossem sendo socadas para o estômago, goela abaixo. Veneno. Tentou tomar leite. Mais veneno. Imaginou-se rato. Era preferível o golpe seco da ratoeira a lhe esmagar o pescoço. Sozinho na casa isolada. Sempre quis viver assim, desde que os ventos da democracia fizeram agentes como ele serem esquecidos. Perdeu a conta de quantos tinha matado “a serviço”. Torturou em nome da pátria. Nunca sentiu remorso. Era um proscrito, alguém sem pai, mãe, família. Coração pedra de gelo. Nunca se apaixonou e a natureza para ele era apenas um belo esconderijo. Imaginava que um dia sofreria pelo que fez. Porque sonhava. Tiro na cara, navalha na carótida, um mar de sangue escorrendo como num filme do Zé do Caixão que tinha visto. Nada. Veneno. Alguém fez o serviço como profissional. Na agonia ele tentou imaginar quem. Não conseguiu vislumbrar um só rosto no universo daqueles que fez sofrer sem piedade. Tentou vomitar. Nada. A Glock que poderia amenizar o sofrimento estava longe da cozinha. Mas haviam as facas. Conseguiu pegar uma. Olhou a lâmina, a ponta. Não teve coragem. Sentiu medo. Pela primeira vez na vida. Era a morte tomando conta de tudo. O desconhecido. Pela primeira vez pronunciou o nome de Deus. Em súplica. Inútil. Como sua vida. 


FOTO: RICARDO SILVA

Nenhum comentário:

Postar um comentário