segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Crônica Urbana


Aquela Terça-Feira, último dia do mês de Novembro, começara diferente de todos os outros dias do ano. Resolvi seguir as recomendações do terapeuta e levantei-me bem cedo para fazer caminhada. Dissera-me ele, que caminhar era um ótimo anti-estressante natural e fazia bem para o corpo e para mente. Há muito que andava estressado e sem demonstrar interesse algum por qualquer tipo de atividade. Pois bem, estava decidido, sairia, enfim, de meu sedentarismo.
Encarei as ruas. O sol começava a nascer e anunciava um belo dia ensolarado. Outras pessoas também caminhavam àquela hora, umas sozinhas, outras em grupos, mas sempre bem humoradas. Às portas de suas casas, alguns vizinhos já aguardavam o homem do leite e à medida que andava, sentia o cheiro do café vindo das residências. As pessoas costumavam levantar cedo naquela região, geralmente bons trabalhadores filhos herdeiros de um regime reprodutor que os controlavam secularmente, armados pela força do capital.
Não demorou muito para sentir os benefícios daquela atividade física. Depois de uma hora caminhando, voltei para casa, banhei-me, tomei o café da manhã e pronto: estava revigorado e bem disposto. Aproveitei para estudar. Precisava me preparar para a prova que faria no dia seguinte. Sentei-me à frente do computador e pus-me a ler um dos artigos necessários para a obtenção do conhecimento. Concluí-lo e passei ao próximo. Este, porém, foi lido apenas até a metade, o assunto não me agradava e passei ao seguinte, que também não foi concluído. Entedie-me e perdi toda a concentração.
Comecei a pensar em várias coisas ao mesmo tempo e isso me deixou bastante cansado. Logo, os efeitos da caminhada começaram a passar e a rotina do meu dia-a-dia parecia voltar ao normal. Abandonei as leituras e decidi sair de casa. Fui visitar um amigo que se encontrava de cama já há alguns meses vitima de um acidente de carro... É provável que ele se entedie com mais freqüência que eu...
Conversávamos enquanto assistíamos a um programa qualquer na TV. Os assuntos eram os mesmos de sempre, mas ao menos tínhamos o que conversar. De algum lugar da casa, surgiu uma bela ninfeta que me fez bem acordado. Ela ajudava sua avó nos trabalhos domésticos da casa do meu amigo. Desejei-a. Quis tê-la ali mesmo. E por alguns instantes deixei-me levar por umas fantasias safadas, que logo cessaram.
Fui tomado de repente por uma espécie de sentimento de remorso: não podia desejar tal coisa, seria por demais cafajeste fazer daquela moça, neta da doméstica, um simples objeto sexual. Quis imediatamente repelir aquele pensamento altruísta, afinal de contas, percebi a forma como me olhava. Ela se exibia descaradamente para mim. Eu a desejava e é verdade que não hesitaria em lançar-me ao seu corpo e em roubar-lhe uns beijos e apalpar suas nádegas macias e seus belos seios, não fosse a presença enferma de meu amigo. Tive, por fim, que conter-me.
Escapei dos olhares sedutores da ninfeta e voltei para casa. O relógio marcava meio dia. Esquentei no fogão a minha comida. Almocei sozinho e em seguida cochilei por uma hora. Ao acordar tentei mais uma vez ler os benditos artigos. Dessa vez fui interrompido pela vizinha, que naturalmente sentia imenso prazer em incomodar-me com aquela música barulhenta. A solução foi mesmo esperar o tempo passar para que fosse de uma vez à Universidade.
À noite, enquanto esperava uma carona para chegar à Universidade, um mendigo atravessou a rua em minha direção. Baixei a cabeça para não encará-lo. Senti vergonha desse gesto. O mendigo passou por mim e cumprimentou-me, andou alguns metros e tropeçou no esgoto, caindo sobre a calçada. Por ali mesmo ficou deitado em seu colchão de concreto e com a cabeça pousada em um coco, que lhe serviu àquele momento de travesseiro. Não demorou muito, o indivíduo sentiu-se incomodado e ingenuamente arremessou o coco no meio da rua. Um garoto que passava de bicicleta não conseguiu desviar e arrebentou-se no chão. Dois homens que estavam perto xingaram o mendigo e um deles chegou a agredi-lo. Por pouco aquele incidente não se transforma em uma tragédia maior.
Assisti toda aquela cena sem manifestar qualquer tipo de reação. Abafei, sem querer, toda indignação que teimava em se mostrar. Olhei para o relógio e preocupei-me com a hora. Chegaria atrasado. Pessoas que tinham o mesmo destino que o meu passavam em seus carros a todo o momento. Mas por que parar? “Que comprem um veículo, ora! Não tenho obrigação de dividir o ar-condicionado do meu carro comprado à prestação com nenhum estudante pé-rapado”. Alguém, por fim, ofereceu-me gentilmente uma carona. 
Da hora que cheguei até a hora que saí, estive a resolver, com uma boa amiga, exercícios da disciplina de Filologia Românica: apócopes, síncopes, Epênteses, suarabáctis, metáteses, hiperbibasmos de sístole e diástole... Tinha sono, mas a campainha era agradável e no fim de tudo, valeu à pena ter estudado.
Voltei de lá em um ônibus que transportava estudantes. Saltei no centro da cidade e segui para o ponto do próximo ônibus que me levaria até em casa. No caminho, um homossexual insinuava-se para alguns pervertidos e gritava que daria seu rabo e faria um “bockete” em todos eles. Uma senhora evangélica que passava por ali, praguejava e insultava o homossexual de enviado de satanás, acusando-o de blasfêmia. Eu, por minha vez, baixei a cabeça e passei a passos apressados.
Não muito distante, um grupo de jovens moto-taxistas clandestinos exibiam-se fazendo manobras perigosas em suas motos, enquanto um outro grupo ouvia músicas de má qualidade e conversava sobre temas fúteis, revelando a artificialidade da juventude local. Eu absorvia tudo aquilo com total indiferença.
Cheguei ao ponto e entrei finalmente no coletivo. Havia nele uma garota que morava no mesmo bairro que eu. Cumprimentei-a e sentei-me afastado dela. Enquanto esperávamos a saída do ônibus, o telefone da garota tocou. Ela atendeu. Sua voz estava trêmula e sua respiração ofegante, parecia que chorava. Ela falava alto e não pude deixar de ouvir a conversa. Alguém de sua família fora internada em estado grave, presumo que tenha sido a sua mãe. Fiquei comovido com o que ouvi e toda aquela frieza demonstrada nos atos anteriores, caíra por terra. Quis falar-lhe, levar uma palavra amiga e de alguma forma ajudar, mas minhas pernas não se moviam, estavam completamente paralisadas. Aceitei a condição e permaneci no meu lugar, que mais haveria de fazer?
Partimos. No caminho avistamos um aglomerado de pessoas que se formavam em uma esquina não muito distante de onde estávamos. Pedi ao motorista que parasse próximo ao local. Antes de descer despedi-me da garota e lancei-lhe um sorriso sincero que me fora retribuído. Duas viaturas acabavam de chegar à cena. Adiantei-me antes que pusessem todos para correr.
Foi com surpresa que encarei o corpo machucado jogado ao chão. Havia muito sangue. As feridas expostas davam a entender que houve ali uma luta desleal entre aquele homem e a coisa que deixou naquele estado. O rosto, apesar dos graves cortes sofridos no resto do corpo, não fora atingido com violência. Pude, pois, reconhecer o indivíduo. Era o homossexual que encontrara horas atrás. Ainda tinha vida. Dessa vez o encarei. Aproximei-me dele e pude sentir seu desespero. Minha reação não foi das melhores. Afastei-me e pus-me a vomitar. Há essa hora, a rua já estava repleta de curiosos que só se dissiparam quando finalmente o homem foi transportado para o hospital.
Fui para casa andando, sem pensar em absolutamente nada, guiado pela leveza da brisa que soprava. Chegando ao lar, tomei um banho e fui direto para a cama. Estava exausto. Dormi como uma pedra.
No dia seguinte, enquanto tomava o café da manhã, ouvi o noticiário transmitido pela rádio local. O repórter informava que um importante representante da elite da cidade fora assassinado no início da manhã na porta de sua casa. Era o 2º membro da alta sociedade morto em menos de duas semanas e o 37º caso de morte por assassinado do ano, segundo dados estatísticos. Da delegacia, o correspondente entrevistava um policial a respeito do ato de violência cometido contra o homossexual na noite passada. Ele repassou o que a testemunha havia declarado: três jovens fortes e de boa aparência, abordaram o homossexual na rua e agrediram-no gratuitamente. Um deles trazia um cachorro Pitt-bull preso a uma coleira e propositalmente liberou-o para que pudesse atacar o sujeito, que chegou ao hospital com vida, mas veio a falecer esperando atendimento médico — Semanas depois, a polícia chegou aos suspeitos. Todos eles eram filhos de empresários influentes. Depois do interrogatório julgaram que o cão foi o grande responsável pela tragédia e sentenciaram que o animal deveria ser sacrificado.
Terminei de comer e desliguei o rádio. Estava impaciente e um tanto incomodado. Comecei a pensar em tudo aquilo que havia acontecido. Pensei naqueles tipos humanos, na pequena ninfeta, no mendigo, nos esnobes da Universidade, nos fúteis moto-taxistas, na garota do ônibus, no homossexual e nos 37, aliás, 38 assassinatos contabilizados. Minha cidade, minha pequena cidade, começava a respirar ares de cidade grande e adoecia... E eu ainda não havia percebido que fazia parte dela.


A. Cavalcante

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