domingo, 31 de julho de 2011

Maurício Baia

"É tudo isso e nada disso"

Release

Ele não vai pegar leve. Passou pela escola do iê-iê-iê realista de Raul, passou pela escola da densidade psicológica de Dostoievski, pela escola Bob Dylan, com suas letras expansivas e visionárias, passou por essas e outras célebres escolas sendo sempre seu melhor e antiexemplar aluno: soube aprender e sair delas, pois a verdadeira função das escolas é deseducar, abrir a possibilidade de o sujeito se tornar, finalmente, um analfabeto, como diria de si mesmo Tom Zé - aliás, outra de suas escolas. Deseducado, analfabeto: criador. E aí pode-se dizer que há um artista.   

O artista Baia é uma combinação desses e outros artistas, e ao mesmo tempo é irredutível a cada um deles. Com Raul, ele aprendeu que "o rock pode ser a melhor música pra se dizer um monte de coisas"; é, como Raul e toda a tradição barroca da Bahia, excessivo; e crítico, irônico, observador mordaz dos estranhos valores da nossa sociedade de consumo. Como Bob Dylan, além do timbre anasalado, ele tende à prosa: gosta de narrar, suas letras parecem querer transbordar a melodia. E, como Tom Zé, sabe contar estórias como ninguém, tem um talento delicioso para o humor, tem o timing cômico de um verdadeiro ator.           

Mas Baia, como eu disse, é tudo isso e nada disso. É uma outra coisa que só ouvindo ou vendo, mas a gente pode se aproximar mais um pouquinho. Ele canta o amor ao avesso: a mulher que tem ciúmes até do cachorro que o lambeu, que quer que ele se lembre até do que ela se esqueceu de lhe dizer, a outra que quer corrigir sua vida com caneta vermelha, quer arrancar suas páginas e tem mania de colocar pingos em ipsilones. Ele canta Deus a torto - o vazio da "falta de Pai eterno" - e a direito: "em tudo o que há, Ele é". "Agora é a hora da falácia", ele diz, iniciando seu show, como num antiapocalipse.     

A inteligência e o rock. A comunhão, que reúne, e a ironia, que separa. Os shows de Baia, quem já viu sabe do que estou falando, são festas para Apolo e Dionísio, ritos para a cabeça e o corpo. Depois da trajetória com os Rockboys (banda em que tocava o guitarrista e talentoso compositor Tonho Gebara, parceiro de Baia em algumas de suas melhores canções, e lamentavelmente falecido no começo desse ano), Baia tem intensificado as parcerias com Gabriel Moura, ex-Farofa Carioca e um dos melhores compositores da sua geração. Soma de forças que vem rendendo canções vigorosas e precisas, como "Fulano" e "Tu", respectivamente, entre outras.    

Dono de uma trajetória que já conta com cinco discos, inúmeros shows e um público fiel, Baia está a ponto de bala, com a faca e o queijo na mão. Às suas canções mais conhecidas, como "Na fé", "O comedor de calango e o gerente da multinacional", "Eus", "Bicho homem", "Baia e a doida", têm se juntado novas composições - como as acima citadas "Fulano"
e "Tu", além de "Habeas corpus" e "TV Cultura", que ainda não foram gravadas, mas já vêm sendo apresentadas em seus shows - que prometem um belo novo disco. "Agora é a hora da falácia", ele anuncia. Mas a verdade é que esse cara é bom - e não é candidato a nada. 

 Francisco Bosco, julho 2004