Nunca procuro estreitar laços afetivos com ninguém e mesmo assim sou vítima de assédios amigáveis, parece que o mundo está cheio de pessoas tristes e solitárias, que procuram algo para ocupar o “vazio” de suas almas. Essa semana um sujeito alto, com cabelos ensebados e de olhos escuros com enormes olheiras, veio à minha procura, com o simples intuito de conhecer-me. Era um sujeito meio taciturno e com a cara carcomida, com roupas elegantes, embora velhas e sujas, mostrara que ele já fora alguma coisa algum dia. Disse-me ele, que minha fama corria tanto quanto o vento nas colinas, embora não tinha certeza do que ele estava falando, mas, tudo aquilo me deixou curioso e deixei a conversa seguir em frente, sem questionamentos.
Dizia-me que eu era uma pessoa interessante e que já fazia muito tempo que estava a minha procura e que só agora descobrira meu paradeiro. Um ótimo motivo para aproximar-se e tentar ser amigável, só não sei por que me destinara tal tarefa. Contava-me histórias mirabolantes sobre sua vida, esperando ele, que eu fizesse o mesmo. Contou-me, de uma vez que foi preso ao sair correndo nu na rua em plena luz do dia, só para satisfazer um antigo desejo que pairava em sua alma, o desejo de “liberdade”, e por alguns instantes se sentiu realmente livre, mas no mundo em que vivemos a liberdade custa muito caro, e todo esse episódio durou até os mantenedores da ordem ser acionados. Era muito falastrão e conversava sobre tudo, principalmente sobre filosofia e explicava-me como isso tinha penetrado no íntimo de sua alma. Eu não tinha muito a lhe contar sobre minha vida, que para ele era tão interessante, então guardei meus esforços para ouvi-lo, apesar de não acha-lo uma má pessoa e de até ter me divertido um pouco durante os dias em que estive em sua companhia. Era apenas uma pobre alma solitária em busca de algo para preenchê-la, e eu não era a pessoa certa para tal trabalho. Ele foi embora após alguns dias, depois de perceber que eu não era aquele homem que ele pensava que eu fosse. E passei alguns dias pensando que tipo de fama aquele homem me atribuíra, mas tudo não passou de um mal entendido e já não me interessava mais.
Durante o inverno outra surpresa, minha filha que eu não via fazia anos, resolveu aparecer. Durante seus dezesseis anos de vida, lembro-me de tê-la visto apenas umas duas vezes quando criança na casa de seus avós e ainda assim rapidamente e sem querer. Nem ela nem eu, até então procurara saber um do outro. Ela nascera fruto de uma noite de amor com uma mulher chamada Clara, depois de dias de bebedeira e de muita farra, nas redondezas de meu último emprego. Clara foi embora alguns meses depois, após descobrir que estava grávida e de saber que seus pais não a aceitaria em casa. Escreveu-me algum tempo mais tarde me contando tudo, e que não queria nada de mim, apenas que eu ficasse longe e não a procurasse. Bem, foi tudo que eu fiz, apesar de tê-la visto umas duas vezes na casa de seus pais com a criança, ainda assim não senti nenhum pouco de vontade de conhecer minha filha. Passei todo esse tempo fingido que ela não existia até ela bater em minha porta. Não sabia como me comportar diante tal situação e tratei-a como um vendedor que bate em sua porta esperando que você lhe compre algo. Ela era uma garota vistosa, com olhos claros e vivos, cabelo meio dourado e encaracolado, como o de sua mãe, vestia um vestido estampado e parecia ter saído de um filme infantil. Ela estava bem cuidada apesar de um pouco magra, sabia que ela não vivia tão bem e que já trabalhava para ajudar nas despesas. Passou alguns dias em minha casa, sempre me perguntando por que eu não tinha a procurado esse tempo todo. Depois de interrogar-me tanto e de esquivar-me de suas perguntas, respondi-lhe que não me sentia seu pai e que tudo aconteceu depois de uma noite de bebedeira e que não sentia nada por sua mãe e que ela era uma estranha me chamando de pai. Não quis ser grosso, apenas lhe contar verdade, mas é muito complicado ser sincero em determinadas situações e tudo acaba por terminar pior do que começara, mas me sentiria pior se lhe tivesse dito o contrário. Ela debandou a chorar e tentei lhe explicar que era melhor assim, mas não adiantou muito e ela continuara a chorar. Não demorou em ir embora me cuspindo descomposturas e ameaçando-me, prometendo que isso não ficaria assim, e que tomaria todas as medidas possíveis para extorquir o máximo de grana que lhe fosse possível. Isso foi o que sempre esperara de minha filha, por isso não me espantei tanto, só demorou um pouco para acontecer.
Os fatos pareciam dar uma continuidade fantasmagórica em minha vida e não deu nem tempo de recuperar-me da última visita e logo apareceu um velho conhecido, que por pouco não presenciou o episódio com minha “filha”. Eu não o via fazia uns trinta e poucos anos, e não ficara feliz por isso, nem triste, somente mantinha-me friamente em relação a meus sentimentos. Ele não tinha mudado muito, apesar da barba extensa e de ter ficado tão corpulento, o rosto era o mesmo, cheio de sardas e arredondado, a voz parecia resistir ao tempo e continuou a mesma de quando brincávamos de subir em árvores. Dissera que foi muito difícil me encontrar, e que havia meses que me procurara e que já estava a ponto de desistir, pois ninguém sabia de meu paradeiro, e já no fim de sua busca, um homem alto e estranho e de olhos fundos foi quem lhe indicou onde encontrar-me, e disse-lhe que eu não era a mesma pessoa, apesar de não conhecer-me bem. Expliquei-lhe que tal homem me procurara tempos atrás e que não tinha mantido uma boa relação comigo. Contou-me sobre sua boa vida no litoral, que tinha arrumado um bom emprego como gerente de uma fábrica de enlatados, e que comprara um pequeno barco onde passava seus finais de semana e seus dias de férias, velejando e pescando com sua esposa e alguns amigos da fábrica, e que mantinha um relacionamento de muitos anos e que apesar de tanto tempo ainda não tinha filhos e que era a felicidade que lhe faltava. Contei-lhe um pouco sobre minha vida, ele pareceu triste pelo que ouvira, então decidi mudar de assunto, pois nunca gostara quando as pessoas sentiam pena de mim. Tentou dar-me dinheiro, mas não aceitei, iria parecer que eu era algum vagabundo, eu preferia passar fome a aceitar dinheiro alheio, vivia bem com minha aposentadoria, que me foi conseguida ao perder dois dedos em uma máquina de cortar chapas de ferro onde eu trabalhava, desde então decidi não mais trabalhar e viver simploriamente. Por fim, me convidou há passar alguns dias com ele e sua esposa em seu barco, convite que recusei logo de cara para que não houvesse outros. Depois de dois dias em minha simples residência, de paredes frias e com o reboco caído que se quer tinha uma outra cama para visitas e uma mesa que obrigava a comermos com os pratos na mão, coisa que há muito tempo me acostumara. Ele se foi e prometeu me visitar sempre que pudesse, dava pra notar que era por pura misericórdia. Assim que ele partira não tardei em abrir uma boa garrafa de vinho que me custara muito caro, e ligar meu velho rádio que me acompanhara desde a juventude, presente do meu falecido avô, e que sempre tocara as melhores músicas de minha vida, e tudo isso era um dos poucos prazeres que me restara, e eu não fazia cerimônia na hora de gastar uma boa grana e passar todo meu tempo com minha garrafa preferida e com a velha e boa embriaguez.
Não tive tanto tempo para aprender a lidar com determinadas situações e as coisas sempre tardaram para acontecer em minha vida, minha primeira briga, meu primeiro porre, minha primeira namorada... E tudo mais, ocorreu tardiamente em minha vida. A única coisa que me acompanhou desde cedo por toda minha existência foi à solidão, que esteve sempre presente a todas as minhas experiências e doutrinando-me para viver ao seu lado, com minha sórdida e reprimida embriaguez, totalmente incompreendido, sempre trancafiado em minha paranóia e trancado em minha casa, sempre cercado por pessoas que só me fazia sentir mais solitário ainda. Tive alguns amigos que pouco a pouco, foi indo embora, e eu fui perdendo minha afeição pelas pessoas e aptidão para novas amizades, demora demais pra conhecê-las de verdade e depois de tanto tempo elas sempre te decepcionam, assim preferi ficar sozinho, andar sozinho, morar sozinho, comer sozinho, beber sozinho, não gosto se quer de animais, eles lembram demais os humanos e prefiro viver longe deles também.
H. Almeida